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Foto do escritorGoretti Giaquinto

Em casa


Artesanato nordestino: as namoradeiras
Na janela, pensando na vida e fora dela (Imagem: Arquivo pessoal)


Retornar para casa é meu porto seguro — parece um lugar comum, mas é o que realmente sinto. No elevador — minha antessala —, com a chave na mão, olhos fechados e a respiração mais profunda, abandono o movimento do corpo, OS PENSAMENTOS AGITADOS.


Mesmo que, num lance de falta de sorte, o elevador possa parar, estarei a um passo da calmaria, rodeada de peças que me trazem lembranças macias. Abandono qualquer incerteza impregnada ao longo do dia. Refaço na memória o caminho até a porta de casa, e sorrio ao pensar no que me aguarda ao adentrar na sala. Sei de cor todos os objetos. A maioria, adquiridos aos poucos, talvez no frenesi de dar ao meu espaço o meu rosto, A MINHA ENERGIA.


Ainda no elevador, o espelho chama atenção para minha face pálida. Há tempo deixei de me expor ao sol, ao seu calor — não o que queima a pele, mas o fogo interno que acalenta, que seduz. Tento me ver sem julgamentos, mas o craquelado da maquiagem desfeita, os contornos borrados e não retocados na pressa de momentos, apenas me confirmam a necessidade de chegar e ser massageada por OLHARES FAMILIARES..


Quando entro, logo sou saudada por uma comissão de frente: as inúmeras peças artesanais que compõem minha trajetória, as namoradeiras. Elas insinuam, sutilmente, que MEU NINHO LEVO DENTRO DE MIM.


Não me lembro como adquiri tantas, nem o porquê, mas são elas que me dão as boas-vindas.  São minhas amigas coloridas. Têm olhos meio esbugalhados. Esculpidas em barro, papier marché, cabaça. Têm pele morena, cabelos compridos, ondulados ou encarapinhados, retratando instantes da HISTÓRIA QUE REPRESENTAM.  


Suas roupas coloridas remetem à chita ou outro tecido barato. Estão dispostas em vários cantos da sala para espalhar vida, sugerindo a arte delicada com que foram manuseadas. Imagino que, na época em que eram reais, postavam-se à janela, mas não para “VER A VIDA PASSAR”.


Dançavam, fofocavam, bisbilhotavam a vida alheia, flertavam com os moços que desfilavam na rua e que não queriam compromisso. Ou espreitavam os maridos – até os que não eram seus, ou os que possivelmente tinham outras à janela, deixadas depois de UMA TARDE SUCULENTA.


Repousadas em console ou prateleira, essas moças me sorriem quando a porta se abre, num convite ao devaneio. São minhas companheiras de épocas difíceis, e se transformaram em colegas de jornada. Mesmo bibelôs estáticos, piscam para mim. Marotas, gracejam e dizem: vá à luta, não esmoreça, UM PASSO DE CADA VEZ.


Com saias rodadas ou peças meio-busto, são essas bonecas que brindam meu regresso, num cumprimento doce e agradecido, ao meu deleite, diariamente. Me vejo em suas peles. Me reporto às suas armadilhas. Me imagino numa janela, sem pensar, apenas a testemunhar e me encantar com as VIDAS QUE DESFILAM POR ELAS.


Quando as vejo, me lembro que posso ser livre como, de alguma forma, as imagino terem sido. Posso abrir janelas sem medo, ou esperar quem quiser, fazer o que eu desejar, como elas foram e fizeram, com o que tinham ou eram. Sem a sofrência inexplicável e a saudade de uma liberdade que nunca consegui alcançar, elas insistem, sedutoras, que são parte de mim mesma. Da minha cultura, da minha ancestralidade. ESTOU EM CASA.



 

Goretti Giaquinto

Desafio 82 de 365

Tema: Folga da caneta

Texto livre de tema e caracteres

Mostrar qual o seu tipo de escrita favorito


 

Gosto de escrever crônicas, contos, poesias e outros gêneros ainda estou aprendendo. Em todos, procuro remeter a temas atuais e que possam mostrar um pouco da visão a partir de mim. Prefiro ficções. Gosto de criar, de imaginar cenas. De observar.


Este texto aborda o tema de um outro : as namoradeiras, um artesanato nordestino que retrata mulheres de uma época, que se postavam à janela das casas, para ver, fofocar, esperar ... Tenho várias em casa, das minhas viagens em visita à minha terra.


Eu quis destacar a importância que elas têm para mim, em vários aspectos de minha vida, através de uma crônica.


 

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2 Comments


Nós é as suas namoradeiras😉

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