Entre a cortina e a parede, existe uma brecha em que vejo a rua. Tento alcançar o ponto mais longe com o meu olhar, é a única maneira que tenho para escapar dos meus pensamentos. Mas, a mão quente dela em meu ombro me lembra que eu preciso ficar em casa.
Durante o noticiário, ela deita em meu colo como um álbum de fotografias e relembra tudo o que já vivemos. “Será que você ainda se recorda do som do mar?”, ela me pergunta com um sorriso bobo no rosto.
Desde então, nós fazemos tudo juntos. Preparamos o jantar, colocamos a mesa e, depois, lavamos a louça ouvindo Gilberto Gil na vitrola. Dia após dia, eu e ela em casa, sozinhos.
De manhã, ela me dá um abraço apertado. Sinto o meu coração acelerar com o seu cheiro doce de infância. Ela pergunta sobre meus pais e pede para eu avisar meus avós sobre todos os cuidados necessários. “Manda um beijo para eles”, sussurra em meu ouvido.
À noite, ela me beija enlouquecidamente. Às vezes, nem consigo ouvir as notícias: o aumento das mortes, o governo em seu despreparo, a vacina que nunca chega. Ela invade a minha cabeça com uma sedução irresistível.
Sinto o meu sangue esquentar, pulsando em minhas veias. A respiração acelera e tudo fica mais quente. Então, costumo abrir as janelas e sentir a brisa gelada de lá de fora. Ainda há vida lá fora?
E a noite nunca acaba bem. Entre eu e ela, uma, duas, três taças de vinho. E fui eu quem bebeu todas. Ela rejeita porque se mantendo sóbria consegue manipular os meus pensamentos. Vocês sabem, ela nunca irá perder um jogo.
Enxugo as lágrimas e consigo ver seu rosto melhor. Ela não quer me levar para a cama, mas quer me beijar a noite inteira, observando a brisa e contando histórias antigas. “Você se lembra daqueles almoços em família?”, me pergunta rotineiramente.
Só ela consegue confundir tanto a minha cabeça. Enquanto eu a amo e a quero por perto, sinto uma vontade imensa de matá-la, afinal ela sabe como me manipular e fazer com que eu seda todas as suas vontades.
Desde que a pandemia começou tem sido assim. Nós dois sozinhos por aqui: eu e a saudade.
Gustavo Lorón tem 27 anos, é formado em jornalismo e apaixonado por escrita.
Ele faz parte do grupo LGBTQIA+ do projeto É DIA DE ESCREVER.
Para saber mais sobre ele basta seguí-lo no instagram @gustaversos.
Gostei muito! O final melhor ainda, contundente!
Que texto maravilhoso Gustavo!
Bem escrito, envolvente, surpreendente...
Muito bom!!
Amei