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Foto do escritorDiogo Dias

Jogos de Tabuleiro

Atualizado: 17 de ago.

O ar estava seco, o clima desértico e o frio também não ajudavam. Nossos suprimentos já tinham escorrido pelos nossos esôfagos e a mente estava carregada com duas preocupações. O perigo e a forma da morte. Antigamente, dizem os combatentes mais velhos, era possível se esconder em um buraco fundo, cavado para a proteção das tropas. Uma antessala das covas inevitáveis, sim, mas que adiavam o fim. Hoje, para se proteger é preciso uma cobertura sobre as cabeças e a agilidade quase mágica para não ser percebido pelas câmeras que sobrevoam o céu como urubus.


            Meus companheiros, jovens que haviam sido lançados à carnificina que banha os tabuleiros palacianos de sangue novo, pareciam saber da sua função sacrificial. Uma bandeira, um hino, um discurso proferido por um grande líder ou um palhaço, tanto faz, eram os componentes do ritual. A guerra era uma história que ouvíamos falar e víamos nas cicatrizes e mutilações dos idosos nas praças. O olhar dos meus companheiros e dos velhos veteranos se encontravam num tempo suspenso em que a vida já não vale muita coisa.


            A fome e o frio na espinha não impediam, porém, que nós ríssemos das piadas do nosso motorista. Seu bom humor era instransponível. Nada parecia ser capaz de interditar uma tirada espirituosa sua. Ele dizia: “é melhor corrermos, senão, perderemos a reportagem com a nossa grande fuga na televisão inimiga! Quem sabe até com uma explosão cinematográfica!”. Eu pensava que morrer assim não seria má ideia. Um espetáculo midiático, em que centenas de cortes de vídeos circulariam por milhões de olhos, que resmungariam, ririam, chorariam, xingariam, se solidarizariam, caçoariam, compartilhariam em sites gores com comentários quase tão violentos que os estilhaços da bomba que irá nos atingir.


            Há algo de divertido na guerra. Ou melhor, há algo de prazeroso na guerra. Os videogames que colocam as pessoas em primeira pessoa, como um soldado no Vietnã, ou na Normandia, ou até nas mais humanas, porque próximas, batalhas de espadas, lanças e escudos de outras épocas pré-industriais. Elas se divertem, sentem prazer em explodir aquelas representações inimigas. Será que o controlador do drone que irá nos explodir já vinha treinado por horas de Call of Duty? Afinal, agora para acabar com uma história basta apenas um botão.


            Ouvimos o zunido se aproximando. O motorista diz com um sorriso tenso de canto de boca que vai ser multado por ultrapassar o limite de velocidade e afunda o pé no acelerador. Balançamos intensamente dentro do jipe, parece que sentimos o solo com nosso corpo. Os olhares dos meus companheiros já admitem que jamais jogaremos xadrez em uma praça com o ar melancólico que transmite a quem passa que ali há algo de muito profundo e misterioso. Só nós é que poderemos compartilhar essa contemplação.


            O controlador do drone inimigo já está com nosso jipe no alvo. Aperta o botão do seu joystick. Levanta-se da cadeira e grita para sua mãe “o que vai ter pra jantar?”.

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