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Foto do escritorvanessa_martyniak

O Dia em Que o Saci Foi Capturado

Atualizado: 16 de mai.




Menina magrela de cabelo amarelo, parecia uma espiga de milho. Desde de pequena era medrosa. Tinha medo de bicho de verdade e de mentira, aqueles que muitos pais dizem que existe para limitar as peraltices da idade.


Na escola era boa aluna, mas tinha dificuldades com matemática. Vivia em uma casa pobre de madeira, sem nenhum luxo, mas nunca lhe faltara o que comer nem vestir.


Filha única, de um relacionamento que não deu certo, a menina vivia apenas com sua mãe, cuja renda era proveniente da revenda de produtos de catálogos. Adorava auxiliar nas entregas, todas feitas a pé, onde eram vividas as mais diversas aventuras. Atravessavam pinguelas (pontes de madeira), de uma vila para outra. Abrigo de ogros, onde era necessário o pagamento da passagem, plantas e ervas eram trocadas para a travessia. Propositalmente sempre alguns passos atrás da mãe, a entrega era feita jogando rapidamente no riachinho da pinguela. O Flamboiant vermelho na rua Fortunato Resta, morada de uma Dríade, era oferecido pedras preciosas deixadas em suas raízes expostas.


Quando as vendas eram boas, a mãe ganhava prêmios, junto aos pedidos vinha um brinde pelas boas vendas, que na sorte podiam se transformar em alguma guloseima diferente para a menina.


A casa onde moravam ficava em um grande terreno dividido em quatro casas. Duas grandes de alvenaria na frente e duas no fundo bem pequenas e de madeira. O quintal de uma delas que vivia a proprietária, era enorme, cercada por pés de frutas como jabuticaba, laranja lima, laranja baiana, pé de goiaba, de caqui, abacate, jambolão, parreiras de uva e mais alguns além de uma grande horta. Abrigo de muitos pássaros e insetos diferentes , para desespero da proprietária, senhora ranzinza de natureza portuguesa. Arapucas(armadilhas) e espantalhos eram preparados no intuito de repelir e exterminar os "demônios" comedores de frutas.


Ao final da tarde os raios de sol penetravam entre as folhas do abacateiro, observados pela menina através da cerca de balaústre ( tipo de cerca de madeira) que separava seu pequeno quintal do grande terreno. Vez ou outra a menina desarmava as arapucas, mirando pedregulhos nas caixinhas de madeiras erguidas com galhos, forradas em seu interior com sementes ou frutas apetitosas, onde os inocentes passarinhos se deleitavam não imaginado ser aquela sua ultima refeição.


Os bonecos feitos com restos de tecidos e espetados em bambus se chacoalhavam ao vento entres as árvores, dando um ar assustador ao anoitecer.

Mas a nossa aventura começa agora na moita do bambuzal gigante em um dos cantos do terreno, lá, segundo sua mãe era abrigo de um Saci, contratado pela velha senhora para cuidar do quintal e espantar crianças peraltas em busca de aventuras e das suculentas frutas. Vez ou outra se ouvia o assovio do Saci, geralmente quando era percebido o entusiasmo da menina entre um vão e outro das cercas de balaústre. Logo a vontade de se aventurar dava lugar ao medo de se deparar com o menino de uma perna só.

1983 - Centro Educacional Sesi 358 cidade de Bauru, semana de provas. Os boletins muito cobrados pelos pais na época era visualizados por cores....Cor verde significava Avaliação Excelente( AE), Azul Avaliação Suficiente e a temida cor vermelha, Avaliação Insuficiente (AI), a cor do castigo. No máximo eram aceitáveis algumas azuis, mesmo assim com "ralhações" e a certeza de guloseimas cortadas. A matéria de matemática esse ano estava difícil de ser compreendia, principalmente pela mente alienada da menina, onde os números se perdiam no emaranhado de cores e formas de um cérebro movimentado. Chegava a sonhar com números vermelhos saltitando junto ao Ogro da pinguela ...Dessa vez algo dizia que ficaria sem as guloseimas por alguns meses, e as aventuras de Jaspion assistidas na única televisão branca e preta da casa. Algo tinha que ser pensado rapidamente, antes do pior acontecer...


Aquela tarde estava ameaçando chover, nublou-se todo o céu e se iniciou um vento quente de verão. As nuvens passaram mas o vento permaneceu. E eis que da janela da cozinha a menina presenciou a cena fatídica, entre os galhos do pé de leiteiro rosa e a cerca de balaústre...alí, um redemoinhos se formou, levantando sorrateiramente a terra vermelha e algumas folhas secas...era "ele". Mais que depressa a menina com suas pernas finas e ágeis correu em busca da peneira, escondida de baixo do sofá com um X feito com caneta hidrográfica bem no centro( importante ferramenta na captura) pegou o fubá preparado para o evento, há meses e já carunchado jogando bem no meio do redemoinho e "plaf"a peneira cantou...tiro certeiro. Uma garrafa de boca larga foi posicionada bem na frestinha, suficiente para capturar o moleque perneta. O coração batia acelerado pelo grande feito, há tempos planejando, era o momento...mas a conversa com o ser mágico teria que ser convincente...a troca tinha que ser interessante tanto pra um quanto para o outro. Longe dos olhos da mãe a menina sentou-se no pequeno sofá da sala com a garrafa já tampada com rolha, esperando que a mãe não sentisse falta. O negocio agora era convencer o moleque peralta e tomar todo cuidado do mundo para ele não escapar.


_ Então Sr. Saci, eu preciso de sua ajuda, tirar pelo menos uma nota azul na prova de matemática. Sei que você é mágico e pode mostrar a resposta certa na hora da prova. Eu ví sua carapuça pendurada na cozinha da dona Catarina, do lado de um guardanapo. Sabe aquele balaústre alí do lado do leiteiro? Ele tá solto, o prego caiu, e eu já testei, se empurrar bem eu consigo passar por ele e correr até a cozinha dela, enquanto ela varre as folhas do quintal. Imaginei que era sua carapuça, por isso você virou escravo dela, é isso? Não pode entrar lá por causa da garrafa d'agua na porta né? Mas eu sim. E se você me ajudar eu devolvo ela pra você e estará livre novamente. Inclusive tenho muito interesse na sua liberdade. O mesmo balaustre fica perto da parreira de uva, aquelas bem doces, que eu adoro. Podemos combinar? Minha mãe fala que quem cala consente...então tá combinado. Sexta feira...levo o Sr. na mochila e te solto na sala, você fica do meu lado me ajudando, me iluminado fazer o X na letra certa...a primeira letra que vier na cabeça sei que foi o Sr que sussurrou ao pé do meu ouvido.


E um alívio da "combinação" bateu no íntimo da menina...tudo estava dando certo, não tinha porque nada dar errado...se sentiu confiante, talvez o primeiro verde no boletim. O saco de doce comprado apenas uma vez no mês poderia vir ainda mais recheado...com alguns pirulitos a mais, ou até mesmo um bonequinho de plástico como prêmio pelo grande feito.. a nota verde...o tão sonhado AE em matemática, coisa quase impossível de acontecer sem ajuda.


Sexta feira - 7h00 da manhã, o sinal tocou para entrada em sala. Entre um tropeção e outro a "tropa" do quarto ano subiu as escadas, num falatório só. As meninas de posse, filhas de pessoas importantes, sempre na frente com suas mochilas coloridas e enfeitadas. A merenda era servida para todos, mas quem tinha condições comprava na cantina ou levavam lancheiras recheadas com biscoitos e bolos de dar água na boca.


Ao entrar na sala, a cena muito mais assustadora que a do ogro na pinguela, era a de dona Eva já em pé em frente a mesa, cara fechada, olhos apertados entre a lente grossa do óculos e sua régua de madeira cantando na palma da mão esquerda. Sua voz grossa de fumante, e sua xícara de café em cima da mesa, junto a uma caneta que mexia o café, e vez ou outra era usada para coçar ouvido por muitas vezes tornaram-se pesadelos na madrugada.


_ Em cima da mesa apenas, lápis, borracha e caneta. Guardem TODO o material em baixo da carteira. Mochilas fechadas em baixo da cadeira. Sem conversa, "sem olho torto". Qualquer movimento sem permissão...diretoria...onde só sairão na presença dos pais.


A tensão era grande, não se ouvia nenhum "pio" dentro da sala. Até os pardais paravam de piar lá fora no pátio.


Ao pegar o material dentro da mochila, a menina soltou a rolha da garrafa, como combinado ....sentiu-se até o arrepiar com a brisa..era ele. Estaria alí do lado, iluminando os pensamentos desalinhados da menina em troca de sua carapuça.


As provas foram entregues uma a uma. Canto esquerdo nome e número. Não podendo esquecer o "Centro Educacional Sesi 358" ao Centro.


Ao sinal estridente a prova daria início...na porta das salas as professoras se preparavam para dar sinal ao bedel, aguardando ao lado do botão para dar a largada.

E "Priiiiiiiiiiiiiiiii" era o momento do desespero, cinquenta minutos para responder 10 questões.


Ansiosa a menina começa ler as questões para interpretar o que se pede, e ao final do enunciado algo assombroso acontece..."Resolva os cálculos das operações utilizando-se as regras aprendidas em sala de aula" . Não haviam alternativas? Neste momento um gelo tomou conta de sua alma, mas seguida pela intuição do Saci a menina tomou posse do lápis e seguiu rabiscando e apagando a folha impressa pelo mimeógrafo. Sem ouvir os passos, a professora circulava entre as carteiras, podendo estar em qualquer lugar a qualquer momento, se tele transportando em segundos de um corredor para o outro, com sua régua de madeira e seus olhos pequenos apertados, tentando penetrar nas mentes ansiosas das crianças e capturar seus pensamentos.


Algumas gotas de suor brotavam do buço, e a sensação de que o moleque peralta havia quebrado o combinado e talvez só quisesse ser solto da garrafa pra continuar a trabalhar para a portuguesa em troca das frutas.


Quem terminava podia entregar e ficar de cabeça baixa, aguardando o sinal para saída. De relance a menina percebia algumas cabeças já abaixadas, sinal de que muitos já entregaram, ficando entre os poucos restantes, sendo foco ainda mais visível da professora.

E bate o sinal, e em segundos a prova é retirada pelas mãos ágeis de dona Eva.


Na semana seguinte seria a devolução das provas e a entrega do boletim aos pais.

Já sem o Saci na garrafa, o que lhe restava era esperar, pois não se sabia onde estava o moleque. Na dúvida, a menina pretendia resgatar a carapuça, pois se o acordo não tivesse sido cumprido ela seria a nova patroa.


Na tarde seguinte, colocou em prática seu plano, e enquanto a portuguesa varria as folhas secas embaixo do abacateiro, rápido afastou o balaustre e se pôs sorrateira entre as folhagens até a cozinha...para sua surpresa o pano vermelho ao lado do guardanapo não estava mais lá, olhando rapidamente ao redor, não encontrou nada. Na saída percebeu que a garrafa havia sido retirada, estremecendo dos pés a cabeça. Ao retornar para a passagem secreta da cerca entre um espinho e outro a roçar os braços apenas uma imagem lhe vinha a cabeça....O Saci com seu cachimbo e um sorriso travesso, com a carapuça recuperada e todas as possíveis traquinagens como castigo pela prisão na garrafa. O saco de doce dava lugar ao receio do que lhe aguardava. Sem fome naquela noite, a menina foi dormir agarrada no braço da mãe, que já desconfiada afinava os olhos.


O que lhe restava agora? Assistir Jaspion ao final da tarde, enquanto podia e jogar a peneira (instrumento de captura) no lixo de forma bem visível, para deixar claro sua boa intenção.





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