Nasceu muito pobre. Mas não de espírito. Se era do contra, expunha. Brigava. Se era a favor, batalhava. Assim era. E não se envergonhava. Sabia que tinha muito a fazer, para trazer as mudanças que sonhava.
O acontecimento não lhe abalou. De pequeno sofria para se manter. Da casa, não sobrou nada. Da família — que era cada dia menor pela fome de sobreviver — restou apenas ele.
O acontecimento tinha sido previsto há um tempo. A internet — a que sumiu depois daquilo — previra. Ninguém deu bola. Nem em seu meio — que o dia a dia corrido não permitia digressões— nem no resto do mundo — que achava que a tecnologia estava a favor dos mais inteligentes, dos mais preparados, dos mais espertos.
Com as dificuldades que lidou desde criança, aprendeu a questionar e brigar pela justiça — a que atendesse os menos favorecidos, principalmente. Mesmo a que não atendia o “legal”. A que é essencialmente cega, surda e muda.
Se virava bem. Aprendeu, ensinou. Mas não imaginou que precisaria mais do que tudo o que vivera, antes do acontecimento. Agora, todos eram inimigos na corrida — a que brigava por qualquer coisa comestível. Por um prato de qualquer coisa. Mesmo sem prato, sem talheres — que se perderam com todo o resto que aconteceu. Com todo o resto dos poucos que sobraram.
Não tinha conhecimento de nada parecido com o que estava acontecendo. Pedaços do que tinha sido casas, ruas inteiras destroçadas. Nada lembrava a vida que havia, que pulsava em casa canto daquela cidade. E de outras. O acontecimento foi catastrófico.
Quem sobreviveu — não tinha ideia de quantos — preferia ter sumido junto com a explosão. Os destroços cobriam lugares e pensamentos nos remanescentes. A sobrevivência era uma questão desumana. Sempre foi, aliás. Estaria em pior situação? Ainda não sabia. Apenas seguia o fluxo da sobrevivência.
De todos os inimigos que enfrentara, esse parecia ser o pior: a fome absoluta. A que não tinha como suprir, pois não havia mais nada comestível, além de pedras, areia, fumaça. Não havia água nas proximidades, e a chuva, antes já escassa, parecia ter definitivamente sumido da existência terrestre.
Acontecera em todos os lugares? Se perguntava, sem saber. As comunicações haviam sido cortadas no dia do acontecimento, e as notícias estavam limitadas ao quarteirão e aos que conseguiram sobreviver, milagrosamente.
Caminhava em busca de algo que trouxesse respostas e alimento. Não encontrou nenhum ser vivo desde que se pusera a andar atrás de explicações e de algo pra saciar a fome e a sede. Desde que acontecera, estava sem noção de tempo. Caminhava o que lhe parecia quilômetros, só e faminto.
Uma leve movimentação em um monte de pedras chamou sua atenção. Foi até o local, esperando encontrar algum animal ou humano sobrevivente, em dúvida se deveria salvar alguém para ter que dividir o nada remanescente. Seu lado guerreiro venceu a dúvida, e começou a remanejar as pedras pra descobrir o que estava por baixo. Alguém aí? Gritava, tentando obter respostas. Silêncio. Até encontrar um corpo, uma criança, pensou. Estava respirando. Alívio. O mais depressa que podia, retirou a pequena adolescente, que esboçou um sorriso enquanto era carregada em seus braços.
Não tinha água para lhe oferecer. Nada que pudesse reanimá-la senão palavras. Delicadamente, tentou acordá-la, pesando se era o que devia fazer, diante do caos que a esperava. Não poderia decidir por ela.
Após minutos de tentativas, ela abriu os olhos, sorriu. Ele fez perguntas, não obteve respostas. Esperou. Seus pensamentos corriam, sem tréguas. Mais uma boca a brigar por alimento, por abrigo. Pela idade da garota, seria sua responsabilidade, se a deixasse viver.
Duvidas passavam rápido, mais uma vez, enquanto a menina não dava sinal de que a vida ainda permanecia nela. Ninguém assistia aquela cena. Suas mãos se mexeram em direção ao pescoço convidativo.
— Pai... Me ajuda!
A dúvida pairou no ar, e as mãos afagaram o rosto infantil. O homem que foi, no passado, reconheceu a responsabilidade em suas mãos, talvez a direção que o destino queria para sua própria vida, agora. Sorriu, sentindo que teria motivos para continuar lutando.
Goretti Giaquinto
Desafio #98 de 365
Tema: Anti-Herói
1.O PROTAGONISTA deve ser um anti-herói, alguém que não concorda com a lei ou que busca vingança de alguma forma.
2. CENÁRIO A história deve se passar em um cenário pós-apocalíptico, onde a sociedade como conhecemos não existe mais e a luta pela sobrevivência é constante.
3. CARACTERES LIVRES. O clímax da história deve envolver uma grande batalha de vida ou de morte, onde o protagonista enfrenta seu maior inimigo em uma luta épica.
É terrível pensar que possa acontecer algo assim. Rezo para outros finais e outros recomeços...
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