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Foto do escritorGoretti Giaquinto

Pesadelo na Disney


O Castelo da Disney quase ameaçado pelo tubarão
Um sonho quase pesadelo ... (Imagem IA da DALL-E 3)


Um dos sonhos do meu filho era ir à Disney. Confesso que eu também queria conhecer, pois, na minha época de adolescente, o sonho maior era o baile de debutantes (que eu não tive). Assim, aproveitei para juntar num sonho só, e fomos os dois para a terra do Mickey.


A viagem foi programada com pouca antecedência, aproveitando a vontade de realizar o sonho logo no início do ano. Saímos de Recife, e pegamos uma excursão no Rio de Janeiro. Meu filho tinha 10 anos, e eu não tive coragem de deixá-lo viajar sozinho, mesmo sendo oferecida essa opção. Como mãe nordestina, preferi estar junto para me assegurar de que nenhum imprevisto tirasse o brilho do sonho. E, lógico, torná-lo meu.


Na época, os celulares ainda eram os tijolões, que não funcionavam no exterior. Ligações internacionais eram absurdamente caras, não havia internet para pesquisas e compras prévias. Uma vez adquirido o pacote com a empresa de turismo, no cartão de crédito, restava-nos confiar na idoneidade dessa empresa, e torcer para que as compras coubessem no cartão de crédito.


Optei por não levar cheques de viagem, e o limite para dólar em espécie não era elevado: só levei quinhentos dólares e meu cartão de crédito. Um amigo me deu cem dólares para trazer um perfume importado, quando esse tipo de compra só era possível dessa forma: através de alguém que fosse ao exterior. E eu deixaria para o comprar quando fosse em um outlet ou na Duty Free.




No avião que nos levaria ao sonho, meu “inglês de escola” foi testado. Ao iniciar o serviço de bordo, a comissária perguntou algo, e eu, pega de surpresa e sem entender, devolvi uma pergunta (what?). De resposta, recebi uma garrafa de água (water). Foi nossa única refeição até desembarcamos em Orlando. Como cochilamos, e nunca tínhamos feito uma viagem internacional, eu e meu filho não fomos despertados para o atendimento de bordo.


Instalados em um ônibus da operadora, numa primeira city tour, se foram muitas poses dos filmes de uma máquina então analógica, na época. Eram filmes de 12, 24 ou 36 poses, que viravam negativos para, revelados, se transformarem em fotos impressas.  A guia da excursão informou que iríamos parar num marketplace, e que poderíamos comprar algo para lanchar, para economizar e não usar serviço de quarto. Animada, eu e meu filho fomos colocando frutas, queijo, pão, o que parecia familiar, e eu peguei mais dois filmes de 36 poses, prevenida para a compulsão por fotos.


Meu cartão de crédito tinha um limite proporcional ao meu salário, que era baixo, e os dólares em espécie, para gastos estritamente necessários ou emergenciais. No caixa do supermercado, o total das compras deu quase cento e cinquenta dólares. Acostumada com os supermercados brasileiros, e ante a conta inesperadamente alta, parei a fila. Tentei explicar que teria que tirar alguns produtos, para levar o que coubesse em cem  dólares. Eu e a operadora do caixa não conseguíamos nos entender. Ela, com paciência zero para meu inglês com sotaque nordestino. Eu, desesperada com os americanos que me xingavam na língua deles. Fila imensa travada, pedi ao meu filho para ir atrás da nossa guia, para nos ajudar nesse impasse. Ele conseguiu, ela veio, e fomos falar com a manager, e a guia traduziu meu desespero. Consegui devolver os dois filmes de 36 poses, que, ao ver a fita do caixa, junto, passavam de cinquenta dólares. Teria que economizar nas fotos. E nos dólares restantes. E fazer contas de cabeça, antes de entrar nas filas.




Quem vai à Disney com criança sabe que a luta com a carteira vai ser diária. No meu caso, na época em que fui, a luta contra a carteira, a birra de uma criança deslumbrada e um limite de cartão de crédito insuficiente para realizar sonhos foi se mostrando um filme de terror.


Ao final de cada atração desembarcávamos numa store como incentivo para adquirir “lembrancinhas” dos personagens. E pequenos gastos em dólares iam sendo feitos, em espécie ou no cartão de credito. E tome fotos. Enquanto isso, enfrentávamos filas imensas, muitas para descobrir, ao final, que era apenas para tirar fotos no colo da pequena sereia ou outra atração infantil. Simuladores me deixavam tontas. Montanhas russas fechavam meus olhos e arrancavam berros insensatos da minha garganta. Eu não tinha ideia do que íamos fazer ao longo do dia, pois a programação era apresentada no mesmo dia.


Tomávamos o café americano pela manhã, tentando reforçar o estômago na economia dos dólares. Eu só conseguia comer melancia e pão, detestava a comida gordurosa ofertada. Lembrava dos filmes assistidos, entendendo tardiamente o que sustentava o povo americano.


Na excursão, dois garotos com idade similar à do meu filho foram sozinhos, aos cuidados da guia atarefada. Com a amizade , eu virei mãe de três. Cuidava deles naqueles parques imensos, deixando-os numa liberdade vigiada de longe, com encontros marcados em alguns lugares, para “bater ponto”. Dava 10 dólares para o meu filho comer aí longo do dia, segurando minha própria fome. Para ele e os novos amigos era diversão pura.


Numa das noites, decidi chamar os dois pequenos para jantar no meu quarto. Pedi comida e assinei uma comanda. Menos de dez minutos depois, bateram à porta, e uma funcionária, nervosa, tentava falar algo num espanhol misturado com inglês. O diálogo tenso, das duas partes, era interrompido pelo meu filho que, no pouco inglês que achava que sabia, tentava ajudar. Quinze minutos depois, consegui, através de mímica, entender que o hotel não aceitava comandas , e eu teria que pagar. Lá se foram mais alguns dólares.


Em Orlando estava frio, e eu não sabia usar a água quente do chuveiro. A água gelada do banho e o frio me derrubaram, e, numa noite, tive que pedir ajuda à guia do grupo, que chamou um médico para me atender. Eu estava com início de pneumonia, e lá se foram mais cem dólares para os remédios.


Nessa altura da viagem, restavam apenas vinte dólares em espécie. E um cartão de crédito que, já em Miami, bloqueou. O dólar tinha disparado, no Brasil, e meu ínfimo limite tinha sido praticamente gasto. Há dois dias da partida, com vinte dólares e um cartão bloqueado, tivemos que nos virar com o café da manhã do hotel e com sanduíches levados do hotel, no jantar. Sem mais compras ou outros gastos extras, rezando para não ter surpresas.


Para completar, a mala de nylon, comprada para carregar os extras aceitos pelo cartão, se rasgou, e tive que empacotá-la em plástico para despachar, rezando para não ser aberta e sumirem com nossas lembranças da viagem. Dólares se esvaindo, restavam mais horas que dinheiro para aproveitar as férias sonhadas.


No avião, já em ambiente seguro, e pensando que talvez o cartão tivesse sido desbloqueado, tive a grata surpresa de não poder usá-lo na compra  do perfume para meu amigo. Eu tinha usado o dinheiro dele, na emergência de ter sido desfalcada pela disparada do dólar. Expliquei e tive de aguentar a raiva embutida nas piadas, e o constrangimento de ter de juntar o dinheiro a devolver, me equilibrando para pagar as contas que vieram dolarizadas.




A viagem dos sonhos foi um pesadelo prático de desinformações de um período que antecedeu a quebradeira da economia mundial. Sem ter como prever, a viagem foi exatamente na véspera da disparada do dólar, que, quando partimos, estava na paridade 1:1. Valor nunca mais alcançado.


Hoje, quando revejo as fotos impressas, me lembro, sorrindo, de como os perrengues não tiraram o brilho de ter realizado o sonho do meu filho. O meu, definitivamente, tinha virado um pesadelo. Tio Sam, tão verdadeiramente excêntrico no seu capitalismo, e tão criativo com seus personagens de contos de fadas encapsulados na terra da fantasia americana, quase me fez pensar que sonhos não se realizam.




 

Goretti Giaquinto

Desafio #62 de 365

Tema: Turistando

Invente um local para o qual foi viajar

Invente um personagem excêntrico que você irá encontrar

Escreva um conto livre de caracteres com um final surpreendente


Não é um conto... é um relato de uma mãe que queria realizar sonhos.

Felizmente, com a internet e possibilidades de informações e comparações na palma da mão, é possível viajar com planejamento, poucos imprevistos e muitos risos. Atentando para não converter o dinheiro, para não deixar de se divertir, e aumentar o limite do cartão ao máximo. Ou se conter nas compras.

 

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1 comentário


Gattorno Giaquinto
Gattorno Giaquinto
07 de mar.

Realizou um sonho pelo menos! Cheio de aventuras😉

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