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Foto do escritorDiogo Dias

Tempo-sofá

Houve uma moda que preencheu as salas e os sonhos de muita gente. A moda dos sofás de couro. Ou de corino, uma adaptação mais coerente com os bolsos assalariados e com as causas animais. De qualquer forma, um sofá de couro ou corino estava na lista dos recém-casados, das famílias mais experientes, dos avós aposentados que aguardavam as visitas de domingo.


A sensação tátil desse tipo de tecido sempre me pareceu pior do que a sua imagem. Realmente, as fotos de fim de ano ficavam muito mais pomposas com a família ao redor do sofá de corino bordô. Corino bordô - reparem que apesar de old fashioned, ainda enche a boca e soa fino.


Só que sentar, se esticar, dormir naqueles sofás tornava a experiência ainda mais cara. Além das parcelas do carnê, a gente tinha que deixar um pedaço de pele que grudava no tecido. Depois do almoço, num calor dos infernos, era de lei esticar no sofá pra ver o futebol aos domingos. O primeiro que deitava tinha que dar umas pernadas em quem ia chegando pra garantir a mordomia. Uns gritos pra lá e uma negociação pra cá e a família se ajeitava em frente à televisão. E nesse tetris dominical pedaços de costas, coxas, braços e até pescoços eram dados em oferenda no altar do sofá de corino.


Vê-se por aí que a beleza requer seus sacrifícios. Aos ácaros que primeiro roeram os frios rastros do meu microbioma cutâneo dedico essa pequena crônica! Diria um antibrascubas suburbano.


Como qualquer moda, porém, a beleza foi sofrendo alterações de juízo e os sofás de corino foram murxando em seu explendor. Via nos olhos da minha mãe que a paixão por aquele monumento arquitetônico dos interiores já tinha esfriado. Algo nos sofás de pano cintilava um novo desejo. Veludo, linho ou microfibra (uma adaptação mais coerente com o bolso dos assalariados e com a paz de quem faz a faxina) eram os novos queridinhos das revistas de decoração.


Também ajudavam na decepção com o corino as marcas do tempo. Sua beleza era rasgada pelos enrugamentos, fissuras e furos. Nós, os gatos e os cães também arrancávamos da tez dos sofás a sua juventude. Um sacrifício em via dupla. Já no fim da presença do nosso sofá de corino rituais de escalpo de pedaços inteiros eram repetidos com compulsão parecida com aquela com que se cutuca as cascas de uma ferida. Sabíamos que era pra pior, acelerava o fim do coitado, mas era mais forte que nós.


Em um sábado qualquer vi com surpresa e uma pequena dor o caminhão das Casas Bahia estacionar em frente a casa. Era o novo sofá de microfibra, cinza como uma tarde fria de São Paulo.


Dei adeus ao corino bordô, que levou consigo nossos afetuosos conteúdos orgânicos e as marcas de um tempo de glórias.

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Stela Alves
Stela Alves
Sep 24

Em minha adolescência esse era o sofá (comprado de um vizinho com meu primeiro salario, um presente para minha mãe). Depois casei e nunca comprei um sofá, eram almofadões confeccionados, por mim e meu ex marido. Após os nascimentos de meus filho, e a separação, vi o caminhão de entrega das Lojas Marabras, e os carregadores adentrar em minha sala, com um sofá não de couro ou corino de tecido. essa leitura me remeteu a casa mãe. Obrigada .

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