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Foto do escritorCátia Porto

Um Quase BBB

Não foi por maldade…


Quer dizer, até foi. Mas só um pouquinho…


Éramos muito jovens na época. Imagine umas garotas sem internet, sem liberdade para sair ou namorar, sem diversão, sem dinheiro e, ainda assim, ávidas por aventuras, explodindo em hormônios e curiosidade, e muito, muito criativas, tentando amadurecer de forma saudável num mundo excessivamente castrador para as mulheres.


É fato que foi cruel o que fizemos. Mas, na época, não nos parecia tanto…


Quem nunca escreveu uma carta, colocou no correio e ficou dias e dias esperando por uma resposta, não sabe bem o verdadeiro significado da palavra ‘expectativa’. Era muito bom. A espera talvez fosse melhor do que o resultado. Quantos sonhos podiam ser alimentados naqueles dias alegres, aguardando a vinda do carteiro! Nossa juventude tentando se conectar ao mundo além da cidadezinha onde morávamos, sem viagens, e-mails, Google, Whatsapp ou redes sociais. Nem SMS ou orkut. Nada. Só as benditas cartas e um posto telefônico ao lado dos Correios. A tarifa era os olhos da cara. Juntávamos moedas, troquinhos, dinheiro do lanche. Tudo pelos felizes minutos de uma conversa. Mas…Ah, como era divertido!


Três amigas. A mais velha, vindo da cidade grande, a mais sabida. A do meio, inocente como uma anjo. E eu, a mais novinha, quietinha e observadora.


Eis que a mais velha havia deixado um namoradinho na capital, com quem se correspondia e telefonava uma vez por semana. Apesar do namoro ser dela, era em conjunto o esforço para angariar verbas e toda a logística para conseguir chegar ao posto telefônico. Um trabalho em equipe. Ela namorava e nós vibrávamos com a aventura. Os relatos do diálogo nos chegava como se fôssemos a terceira parte do casal. Até que ela, a mais velha, resolveu que nós deveríamos também ter nossos próprios ‘namoros’. Então, mesmo sem conhecermos pessoalmente os amigos do namorado dela, a partir de algumas informações, cada uma escolheu um para escrever anonimamente, dizendo-se apaixonada. Até mandamos e recebemos fotos. Fiquei encantada pelo meu e a do meio, pelo dela. Namoros à distância, bem parecidos com os atuais sites de relacionamentos. A diferença é que, entre uma e outra mensagem, havia um espaço de uma semana ou mais. 


Tudo ia bem, até que, não lembro bem por qual motivo, a mais velha inventou para a do meio que o rapaz com quem esta se correspondia tinha uma televisão que lhe permitia vigiá-la em todos os momentos. Até criou um nome enorme e engraçado para o tal aparelho espião.  E não é que a outra, inocente, acreditou?


Eu, não desmentindo, acabei me tornando cúmplice naquela história. 


O problema é que a mentira pegou e a menina, ingênua, já não queria fazer mais nada porque o rapaz podia estar vendo. Ir ao banheiro, mudar de roupa, ouvir as broncas dos pais, tudo era motivo de muita vergonha para ela. Pensou até em terminar a história das cartas, mas achou que seria ainda pior. E se o vigiador quisesse se vingar dela, chamando os amigos para vê-la em seus momentos de intimidade. E se ela ficasse falada? 


Ficar falada era o terror de toda menina. Nunca mais ninguém bem intencionado se interessaria por ela. Nada de compromisso ou casamento. Algo como uma pré-rua da amargura.


Como éramos bobas!


O mito do menino que espionava ficou durante alguns meses ainda, aterrorizando a menina do meio, coitada. É claro que, no começo, eu e a mais velha riamos da situação. Só que eu comecei a me sentir incomodada. Era pra ser uma mentira desmentida logo em seguida, mas a mais velha se divertia e foi espichando a história até não poder mais. Uma crueldade, comecei a pensar.


Um dia, não aguentei e contei a verdade para a menina enganada.


A mais velha, que tinha inventado a história ficou chateada comigo e a do meio, é claro, com nós duas.


Ficamos as três afastadas por um tempo. Uma eternidade! Que dias chatos e sem graça, sem cochichos e risadas, sem fofocas e conversas sobre namoros!


É lógico que não demorou muito para fazermos as pazes. Adolescentes podem ser muito cruéis, mas também não têm muito tempo para guardar rancor. O mundo chama e, em grupo, tudo fica bem melhor do que sozinha.


Essa fase passou, nós nos distanciamos na vida, mas sempre que nos encontramos, até hoje, o mito do menino e seu misterioso aparelho espião provoca boas risadas…




 



Cátia Porto

Desafio #52 de 365

Tema: Criando mitos


2 comentários

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2 Comments


Somos de uma geração de muitas histórias que fazem bem em ser contadas. Troca de cartas, amigos da vizinhança, amores platônicos, informações pingadas. Uma era onde nossa ingenuidade não tinha rótulos maldosos. Ótima história!,👏👏

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Cátia Porto
Cátia Porto
Feb 24
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Obrigada!

É verdade. Os jovens de hoje nem imaginam no quanto éramos felizes, mesmo sem os recursos tecnológicos modernos.

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