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Foto do escritorGattorno Giaquinto

Uma Rua, Palco Do Passado Para Uma Vida Inteira

(Rua de um subúrbio, meninos brincando na rua. Imagens: fotografia e mídia do Wix)


No sonho, repetitivo, caminho por ruas que, na vida real, eu reconhecia - eram cerca de 30 minutos de caminhada para a escola, ida e volta, durante anos. No entanto, ao sonhar, estranho as ruas que me fariam chegar em casa. Quando, finalmente, encontro o meu destino, meu coração se aquieta. Então, abro os olhos e encaro a escuridão do meu quarto, com o coração disparado pelos momentos de angústia vividos oniricamente.


Rua Arnóbio Marques, em homenagem ao cirugião do Real Hospital Português de Beneficência de Pernambuco. Quando nos mudamos para o sobrado de número 340, eu tinha cerca de 10 anos. Saímos de um subúrbio em que as ruas enchiam de água após fortes chuvas - as famosas trombas d'água do Recife. Na última delas, nosso pai teve que nadar para chegar em casa após o trabalho. Foi o estopim para nossa mudança acontecer, em busca de um lugar que não fosse tão propício a enchentes.


Até hoje, lembro em detalhes a casa onde moramos, e, de certa forma, dos nossos vizinhos da época. Logo que por lá chegamos, nós, crianças, fomos estimuladas a fazer amizade com as crianças do bairro. Tímida, eu não conseguira ter muitos amigos até então. Nossa mãe era mais popular que todos nós, e, com certa facilidade, arranjava jogos envolvendo as crianças dos nossos vizinhos. Como o quintal da casa era enorme, jogávamos voleibol numa rede improvisada, às tardes, depois da escola. Eu adorava o jogo (e, é claro, a constante visita do menino-vizinho da esquina, garoto foi meu primeiro paquera ou crush).


     A rua era cenário das famosas quadrilhas de São João, bem movimentadas no mês de Junho. Numa delas, fui ‘empurrada' para dançar com o 'padre' da quadrilha, apelidado  Maguary - nome de uma marca de picolé, concorrente da Kibon. Ele era mais velho, bebia muito, e não se mostrou lá muito entursiasmado pelo par arranjado para ser sua companhia. Frequentávamos outras destas danças no colégio, e nelas sempre eu me sentia a última das meninas. Sonhava em ter como par um menino que fosse se tornar meu namoradinho, mas o sonho sempre virava um pesadelo. Numa destas danças, por falta de meninos, fizeram me vestir roupas de matuto masculinas, para fazer par com minha gêmea e podermos participar da quadrilha! Não me recordo o porquê da escolha recair em mim, mas o sentimento de personificar um garoto não me fez ficar muito orgulhosa e acentuou a minha falta de confiança de meus atributos femininos.


     Com o passar dos anos, fiz algumas amizades com algumas garotas da vizinhança, mas o meu interesse maior era mesmo por achar algum garoto que me fizesse sentir apreciada. Os amores eram sempre platônicos, no entanto. Recordo de um destes, um menino bem feinho, mas bem charmoso, irmão de uma das meninas. Quando ele descia a rua, assobiando, eu corria para a janela do quarto que dividia com minha gêmea, no primeiro andar do sobrado, de frente para a rua. Meu coração batia forte, ao vê-lo passar. E minha gêmea corria junto, embora nós duas disfarçássemos para uma não notar o interesse da outra, em comum. O garoto fazia charme, mas nenhuma das duas chegou a se envolver com ele. Desconfio que ele notara nosso interesse, e fazia de propósito o anúncio de sua passagem com o assobio musical.


   Quando ganhamos uma bicicleta de presente de Natal - o último em que recebemos presentes, pois a firma do nosso pai foi à falência-, passear pela rua virou rotina. Como quase todas as crianças possuiam bicicleta, ganhar uma foi, para nós, um instrumento de inclusão na turma. E, na prática, serviu para cobrir o caminho de ida e volta do colégio em menor tempo, em vez da longa caminhada a pé.


Moravam na rua outros meninos, que se tornaram substitutos dos meus crushes anteriores. O irmão do adolescente gordinho, com cabelos lisos parecidos com o cantor da época Ronnie Von; e o vizinho da casa ao lado da nossa, que eu considerava "muita farinha para o meu caminhãozinho". Também haviam duas meninas de mesmo nome. Uma era namoradeira, filha da fofoqueira do bairro; ela namorava na frente da casa dela, numa pequena varanda, e era o nosso 'cinema ao vivo', com cenas de sarro que estimulavam nossa imaginação infantil. A outra menina era mais chique, única garota entre os irmãos, e a família acabara de retornar do exterior. Eu tinha inveja do seu corpinho bem feito, e perguntava sutilmente o que ela fazia para ser tão popular entre os garotos. Com meus sentimentos de inadequação corporal à flor da pele, muita timidez e falta de auto-estima, buscava nos outros algo para me sentir incluída e confortada. Sentimentos estes que perduraram por muito tempo, e ainda fazem parte da minha vida adulta e quase senil.


     Foi nesta rua e naquela casa que nossa família alcançou o apogeu, e passou pela decadência financeira. Mudamos de casa, na mesma rua, para o número 366. Casa odiada, por ser bem menor e ter muitas falhas. Nesta casa, eu e minha gêmea comemoramos com uma festinha nossos 15 anos. A festa não teve comparação com a promovida para nossas duas irmãs mais velhas - que aconteceram em grande estilo, na casa de número 340. Era comum na época apresentar as debutantes, ao alcançarem os 15 anos, à sociedade. As festas tinham valsa de meia-noite com 15 pares de dançarinos, bolo com 15 fitinhas para serem puxadas pelas meninas (todas com mesma idade) - onde uma fita amarrava uma aliança na outra ponta (representando casamento para a felizarda), outra um dedal (assumindo que a infeliz viraria 'titia', ou seja, solteirona), e outra uma cruz (denotando o caminho para virar freira). Não tivemos uma festa de grande porte, mas o bolo e a valsa aconteceram.


     Pouco a pouco, nossa família foi se dispersando, uns partiram, outros ficaram, até que a mudança de casa para outro subúrbio mais afastado foi inadiável. A rua, que significou tanto na minha adolescência, fonte dos meus primeiros amores platônicos e das primeiras amizades de turma , foi perdendo seu encanto.


     Ao retornar depois de muitos anos a Recife, passei pela rua Arnóbio Marques, mas as casas 340 e 366 não existem mais. A rua tranquila de antes, com vizinhos que se conheciam e se visitavam, virou movimentada pela passagem constante de carros, prédios e estacionamentos substituindo as casas antigas. Não sobreviveu à modernidade. Restaram apenas as boas lembranças daquela época.


     Hoje, após residir em apartamentos por ruas diversas, diferente estado e, recentemente, outro país, encontrei uma nova morada - onde tento reconstituir a mesma camaradagem dos vizinhos daquela rua tão amada. Sei que não posso reviver o passado. Resta-me, apenas, encontrar a paz que me permita ter sonhos sem angústias, sabendo que o caminho outrora conhecido me levará, sempre, ao encontro de mim mesma.


Afinal, uma rua serviu de cenário para o começo de uma vida adulta. E outras tantas servirão de palco para muitos outros acontecimentos, que serão adicionados aos muitos que colecionei nesta vida afora.


 

Gattorno Giaquinto

Desafio 365 Dias de Escrita # 57/ 365: Se Essa Rua Fosse Minha


  1. Escreva sobre uma rua em que já morou no passado

  2. De onde vem o nome, relacionamento com vizinhos, o que mudaria nela...

  3. Livre de caracteres


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2 Comments


Cátia Porto
Cátia Porto
Mar 01

Lendo o su texto, eu me identifiquei com a personagem narradora. A mesma timidez, mesma a baixo autoestima, os amores platônicos...

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Conheço a rua, as casas, os perrengues...mesmas lembranças . A adolescência que começou com sonhos desfeitos. Certamente, tudo aconteceu pra lhe tornar quem vc é, onde vc está. 😉💓

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